O professor de finanças Oscar Malvessi está há 20 anos tentando convencer os executivos brasileiros a adotar na gestão das suas empresas o método desenvolvido por ele que leva em conta o custo de oportunidade do capital dos acionistas e o risco do negócio.
Não é uma tarefa fácil num ambiente em que é adorado o bezerro de ouro Ebitda, o lucro antes de juros, imposto de renda, depreciação e amortização, na sigla em inglês, – ou “earnings before I tricked the dumb auditor”, em uma das muitas versões sarcásticas da sigla -, que tornou-se a solução rápida e fácil para satisfazer as necessidades de curto prazo, especialmente para balizar quanto de remuneração virá no fim do ano.
A metodologia que ele batizou de Valor Econômico Criado (VEC) tem as suas bases no conceito de “lucro econômico”, explorado pela consultoria americana Stern Stewart com a marca EVA (valor econômico agregado, em inglês), e também na chamada “gestão baseada em valor” desenvolvida pelos professores americanos John D. Martin e J. William Petty.
Malvessi foi aluno de Martin na Universidade do Texas e vem há mais de 20 anos trabalhando como consultor e professor da Fundação Getúlio Vargas. Ele lançou recentemente o livro “Como criar valor na sua empresa” (All Print Editora, 2023), no qual apresenta a versão brasileira dessa avaliação dos resultados para além do contábil.
O objetivo principal é medir a capacidade de uma empresa de “gerar valor”, e não apenas dar lucro líquido como é prescrito pelas normas internacionais de contabilidade.
Numa explicação simplória, e tentando desviar dos terríveis acrônimos da literatura financeira, calcula-se o custo médio ponderado de capital (conhecido pela sigla Wacc), a partir das demonstrações contábeis, com alguns ajustes, para saber se os recursos aportados pelos acionistas na empresa (o capital próprio) estão sendo devidamente remunerados, levando-se em conta outras oportunidades de investimento que esse acionista teria. O resultado da conta é comparado com outro acrônimo muito apreciado, o Roic, ou retorno do capital investido, que mede a eficiência no uso dos ativos operacionais. Quando o retorno supera o custo de capital, a empresa passa no teste da geração de valor ao acionista.
Além de simplesmente medir a criação ou destruição de valor – o lucro líquido contábil falha nessa tarefa no curto prazo, principalmente quando é turbinado por efeitos não recorrentes -, o conceito é vendido como um método gestão, uma ferramenta para avaliar com mais profundidade os negócios e áreas da empresa e a partir daí ter uma base mais segura para crescer.
Nas suas aulas na FGV, Malvessi costumava contar o caso emblemático das duas cervejarias que davam lucro, mas só uma criava valor. Eram, claro, Brahma e Antarctica, depois unidas na Ambev. A primeira, criadora de valor, era comandada pelos investidores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Alberto Sicupira desde 1989, adeptos de primeira hora do novo conceito de gestão.
O exemplo era forte porque o negócio que começou como a união das duas grandes rivais nacionais evoluiu para uma fusão multinacional com a belga Interbrew que desembocou na AB InBev, maior cervejaria do mundo. O conceito de criação de valor, dizia Malvessi aos seus alunos, estava por trás dessa alavancagem extraordinária.
A teoria continua de pé – não há como negar que o trio multiplicou riquezas com sua capacidade de gestão -, mas o escândalo da Americanas no começo deste ano tirou muito do seu brilho. A varejista, comprada em 1982, representou a entrada do trio na gestão empresarial. Foi na sua reestruturação que pode ser testada a eficácia de seus métodos.
Nos rankings feitos por Malvessi, Ambev e Lojas Americanas sempre estiveram entre as poucas criadoras de valor do mercado brasileiro. Uma compilação feita para o livro mostra que nos dez anos entre 2012 e 2021 eram apenas 16 do lado da criação e 120 no lado da destruição. Agora, sabemos que eram, na verdade, 121.
E que destruição foi essa. Segundo as demonstrações financeiras refeitas da Americanas de 2021, divulgadas em novembro junto com os resultados de 2022, o prejuízo líquido naquele ano foi de R$ 6,24 bilhões, e não o lucro de R$ 544 milhões reportado anteriormente. O patrimônio líquido sumiu, e com ele o capital dos acionistas. Ficou um rombo de R$ 12,62 bilhões. O prejuízo acumulado até 2022 somava inacreditáveis R$ 40 bilhões.
Tamanho desastre, disse Malvessi em conversa com o Valor, foi resultado de uma falha grave de controles, internos e externos, que coloca em xeque o padrão de gestão do trio e lança dúvidas sobre os números das empresas sob seu comando.
Ele ainda está tentando digerir o que aconteceu com uma das suas criadoras de valor. Escreveu seis análises dos números até agora e planeja mais, à medida que forem sendo publicados os resultados trimestrais atrasados. Ele não é o único acadêmico indignado. Eliseu Martins, mestre em contabilidade que estava na banca examinadora quando Malvessi defendeu a sua tese de doutorado, já confessou que raras vezes se sentiu tão mal como contador, professor e cidadão. Analistas, auditores, reguladores e, devo dizer, jornalistas certamente compartilham desse mal-estar.
Nelson Niero é editor de S.A. do Valor Econômico
E-mail: nelson.niero@valor.com.br
Reportagem publicado no site do Valor Econômico em 28/12/2023
Leia em: https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-incrivel-destruicao-de-valor-da-americanas.ghtml