Este dia 11 de janeiro marca o primeiro aniversário da divulgação, pela Americanas, de “inconsistências contábeis” (termo que se revelaria um grande eufemismo) no valor de R$ 20 bilhões em seus demonstrativos relativos a exercícios anteriores, incluindo o do ano de 2022. O caso pegou de surpresa o mercado, com enormes impactos no valor das ações da empresa, em suas relações com fornecedores, com investidores e outros públicos, e gera, até hoje, reflexões sobre a dinâmica da relação do CEO e do conselho fiscal com outras instâncias decisórias de uma companhia.
Comecemos pelos números: nos ajustes contábeis publicados nas demonstrações financeiras de 31 de dezembro de 2022 (já ajustadas e republicadas), foram identificados valores expressivos da fraude contábil. Por exemplo, o lucro contábil em 2021, de cerca de R$ 500 milhões, passou para prejuízo de R$ 6,3 bilhões, e o prejuízo de R$ 400 milhões reportado em 30 de setembro de 2022 passou para mais que o triplo de prejuízo: R$ 12,9bilhões. Por fim, o ajuste de prejuízo dos anos anteriores a 2021 chegou a R$ 21,5 bilhões, totalizando R$ 40 bilhões em prejuízo.
Os dados ajustados também mostram a falta do registro, nos últimos anos, das operações de risco sacado de R$ 15,9 bilhões e outras operações de dívidas que, somadas, alcançaram o relevante valor de R$ 39 bilhões de endividamento bancário oneroso, sendo que, antes da publicação da fraude (no balanço relativo a 2021), esse valor era de RS 12,7 bilhões.
Em relação ao pagamento de dividendos, houve um pagamento de R$ 333 milhões em2022, justamente o ano em que houve o maior ajuste contábil da fraude. Considerando os ajustes contábeis publicados em 2022, infere-se que a Americanas não tinha capacidade financeira de remunerar os acionistas, pois não havia lucro contábil nem em2022, muito menos nos anos anteriores.
Diante de uma situação que se revelou insustentável, uma vez reveladas as “inconsistências contábeis”, não restou à companhia outro caminho que não o de entrar, apenas uma semana depois, com um pedido de recuperação judicial – em uma situação em que, segundo a própria empresa, restavam apenas R$ 800 milhões em caixa. O plano, vale lembrar, só foi aprovado quase um ano depois, em dezembro, após um longo período de negociação com bancos credores.
Nessa situação, o valor das ações, que chegou a atingir R$ 121 em agosto de 2020 (seu recorde histórico), caiu para uma cotação média de R$ 1,34 ao longo do ano passado, refletindo as enormes dificuldades enfrentadas.
Para além do impacto no valor dos papéis da própria companhia negociados em bolsa, a crise gerou um relevante impacto no mercado de crédito privado no Brasil, pois o risco percebido pelos bancos aumentou de forma expressiva. Com isso, houve escassez e as taxas também subiram. O varejo foi o mais afetado, pois é o setor no qual as operações de risco sacado foram identificadas; também houve aumento nas operações de crédito de capital de giro.
No âmbito dos fornecedores, é preciso ter um olhar especial de como a situação da Americanas prejudicou uma enorme quantidade de pequenos parceiros, já que esses têm uma capacidade financeira bem mais limitada que a das grandes corporações de gerir seu caixa e negociar com o mercado, quando ocorre uma situação inesperada como essa.
Como um efeito da “pedra atirada no lago”, o impacto da revisão dos balanços da varejista se espalhou pelo setor como um todo.
Por fim, para os reguladores ficaram claros, desde a primeira divulgação, os indícios defraude. A B3 rapidamente removeu a AMER3 de seus principais índices e, em novembro, da listagem do Novo Mercado – segmento destinado às empresas com padrões mais elevados de governança. Estava claro que a empresa não cumpria essas metas de governança e transparência às quais se supunha estar adequada. Já a CVM abriu várias investigações contra a empresa, além de reforçar o rigor a respeito do registro das operações de risco sacado nas demais empresas.
Não se pode, por fim, ignorar as reflexões trazidas pelo caso em relação às responsabilidades do conselho fiscal, dos comitês de auditoria e finanças e do conselho de administração no sentido de estarem mais atentos à análise criteriosa das demonstrações financeiras e do registro das transações.
A magnitude dos valores declarados pela fraude instaurada na Americanas, a destruição do seu valor no mercado e do legado de uma empresa centenária abalaram, profundamente, a credibilidade e a confiança do mercado, de investidores e de stakeholders, em geral.
Estas são as lições do caso Americanas. Resta saber se foram aprendidas.
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